RIO - Agosto de 1989. Miguel Falabella chega à casa da atriz Natália do Vale e entrega 20 páginas de sua nova peça para ela, Suzana Vieira, Arlete Salles e Thereza Piffer. Ao fim da leitura, pergunta, ansioso:
— E aí?
Uma olha para a cara da outra, até que Arlete toma coragem de traduzir o sentimento comum:
— Achei meio chocho.
Agosto de 2012. Vinte e três anos depois, a atriz faz um mea-culpa:
— Não tenho feeling nenhum. Mas é que tínhamos muita expectativa.
Após a reação desanimada do elenco, Falabella voltou para casa e trabalhou duro.
— Não me deixei abater com a reação delas. Aquele era um primeiro tratamento, que fiz correndo, em quatro dias.
O texto final transformou-se num maiores sucessos da história do teatro brasileiro. Só no Brasil ficou seis anos em cartaz e inspirou um filme dirigido por Daniel Filho. O espetáculo estreou em 1990 num teatro de 133 lugares, o Candido Mendes, ganhou versões em vários países latino-americanos e reestreia nesta sexta-feira, num espaço com 926 poltronas, o Oi Casa Grande.
— Desde que foi lançada nunca deixou de estar em cena — diz ele, que define a montagem atual como uma “celebração”, que mantém três das quatro atrizes que estrearam o espetáculo. — A Natália não pôde fazer porque está reservada para “Salve Jorge” (próxima novela das 9 de Glória Perez).
Em seu lugar, entrou Patricyia Travassos, mas mesmo ela não é uma novata no assunto — substituiu Natália num período em que a colega foi para Londres. O reencontro das quatro foi marcado pela emoção e pelas brincadeiras.
— No primeiro ensaio aqui no teatro, quando abracei a Thereza fiquei arrepiada e chorei — diz Susana, que trocou o z pelo s desde então.
Não foi a única mudança.
— A peça foi um turning point em minha carreira. Minha vida se divide em antes de Miguel e depois de Miguel. Tivemos segurança profissional maior e alguém, o público, confiou em nós. E ela me deu estabilidade econômica. Foi a única peça que fiz com ele, que não me escala para nada, mas já fico felicíssima com isso.
Falabella responde, no mesmo tom de brincadeira:
— Nunca dá para escalar você, porque você já está reservada com anos de antecedência.
— Deve ser para o céu — diz ela, bem-humorada.
A história das quatro irmãs que se reúnem no velório da mãe e, em meio à partilha dos raros bens, relembram o passado, trocam acusações e compartilham todo tipo de emoção, vai sofrer poucos ajustes. Na época, as personagens tinham 40 e poucos anos — menos a de Thereza, com 25. No texto, elas se referiam a episódios antigos falando em “20 anos atrás”. Agora, dizem “40 anos atrás”. O apartamento caindo aos pedaços da mãe em Copacabana, que valia US$ 100 mil, passou a valer R$ 500 mil. As cartas lidas no fim viraram e-mails. Outra alteração é no cenário, que está mais rico. A capela, por exemplo, que só contava com o caixão, ganhou uma imensa coroa de flores e quatro vitrais.
— Tô até besta com essa capela — diz Falabella.
Ele planejava remontar “A partilha” em 2011, quando ela completou a “maioridade”.
— Não tivemos tempo. Juntar todos nós era complicado.
Em 2000, ele fez uma continuação, “A vida passa”, que não foi tão feliz, mas ainda assim ficou dois anos em cartaz.
Os cinco não têm dúvidas sobre a atualidade de “A partilha”.
— É um teatro de sentimento, atemporal, que não passa por modismos — diz Arlete.
— É uma peça que fala de afeto — observa Falabella. — Quando estava em cartaz em São Paulo, vi muita gente ligando depois da sessão no orelhão para falar com parentes: “Estou telefonando para dar um beijo, estou com saudades”.
E que provoca identificação.
— Lembro-me que saíamos do teatro e achávamos bilhetinhos nos para-brisas dos nossos carros dizendo “Você é igual a um parente meu” — conta Thereza.
— Todo mundo tem uma Selma em sua vida, chata, carente, invejosa, vítima — acrescenta Patricya, referindo-se a sua personagem, uma mulher conservadora, casada com um militar, moradora da Tijuca. — Ela não tem absolutamente nada a ver comigo. Gosto porque ela é um contraponto à coisa mais histriônica de Maria Lúcia (Arlete) e Regina (Susana).
Arlete fala de seu papel, uma mulher que largou um casamento tradicional e foi viver um grande amor em Paris.
— Maria Lúcia é vibrante, de caráter, tem humor.
Ela diz se identificar quando a personagem observa que nunca dependeu de homem.
— Mas não quando diz: “Eu não sei viver sozinha.” Eu sei.
Para Thereza, sua Laura — uma acadêmica que surpreende as irmãs ao revelar sua homossexualidade — tem pontos em contato com ela.
— Também sou muito crítica, observadora, mas ela é muito sisuda, não consegue rir das irmãs, acha que são muito loucas e fora da realidade.
Susana interpreta uma mulher liberada e esotérica.
— Miguel me deu uma personagem que permite passar meu vigor, minha alegria de viver, minha irreverência. Mas acho difícil aceitar o lado esotérico dela. Nunca tive isso, continuo cética. Todas as falas que se referem a esoterismo são as mais difíceis para mim.
Assim que surgiu a ideia da remontagem, Arlete pediu:
— Não chama ninguém que já fez. Eu tinha medo: “Será que vai aquecer meu coração outra vez?”
Susana pensava igual:
— Eu e Arlete conversamos sempre sobre o desejo de fazer algo novo. Pensávamos se não seria melhor um desafio, em vez de algo que já dominávamos. E eu não sabia onde ia achar a Regina hoje. Não tenho mais a leveza dela.
Mas bastou reler o texto para as dúvidas se dissiparem.
— Começamos a ler juntas e falamos: “É isso!” Vamos ser felizes enquanto dure.
Falabella conta que recebeu um pedido para a encenação da peça na Grécia:
— No meio da crise por que passa o país? — supreende-se. — Tenho certeza de que “A partilha” vai ser montada nos cem anos da minha morte.
FONTE: O GLOBO
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